25 de setembro de 2010

É...

Foi uma semana esquisita. A notícia da morte da Cristina empurrou-me para um estado de luto que eu nunca tinha sentido. Muito sinceramente, não tem nada a ver com o luto que fiz da Mãe e em que vivo há doze anos, um luto que, viva eu até aos cem anos, nunca se erradicará da minha alma e do meu coração. É, digamos, um luto crónico, uma doença incurável que se vai tratando e que, de quando em vez, se manifesta num episódio mais doloroso. A morte da Critina foi o choque inesperado de uma amizade que se cortou pela raiz porque uma de nós morreu. Ainda não apaguei o telemóvel dela e não tem havido dia nenhum em que não pense nesta tragédia toda.
Enfiei-me no trabalho e rodeei-me de gente. Saí. Convivi. Cheguei sempre tarde a casa. Queimei os últimos cartuchos da minha pequena família só de adultos. Daqui a um mês nasce-nos alguém e eu despeço-me desta fase em que as últimas crianças foram precisamente eu e a Mana, já lá vão trinta e tal anos.
Hoje estou aqui, rodeada das paredes da casa grande. Amanheci sózinha. Dormi de alarme ligado. Vesti um pijama porque os lençóis estavam frios. Reencontro-me com a solidão. Lembra-me dos tempos em que aprendi a viver aqui. Não me angustia. Não é por saber que regressas. É por saber que sei estar assim. É por saber que esta é a minha vida e eu gosto dela. Sim, é isso tudo mas é bom quando regressas e eu te vou buscar ao aeroporto e a primeira coisa que vejo é o teu sorriso de puto e tenho de parar para pensar que és um homem e que tudo isto aconteceu vertiginosamente "against all odds".
Hoje vou estar aqui a viver a casa, como alguém me disse nesta semana esquisita.

- Agora estás, finalmente, a viver a casa.

E eu não me tinha dado conta. Dou-me conta agora. Dou-me conta que andei a expulsar os fantasmas que habitavam aqui, na casa grande cheia de ecos, de divisões desabitadas, de memórias. Dou-me conta que se olhar em volta já nada resta da casa que era da Mãe e onde a Mãe nos morreu. Ficaram os azulejos da cozinha e pouco mais. Dou-me conta que o que resta aqui do meu não-casamento são coisas de que a minha cabeça já mal se lembra. Dou-me conta que, sem me aperceber, construí a minha casa. Erigi-a pedra a pedra. Demorou anos, lágrimas, trabalho, dor em cima de dor. Os fantasmas observavam-me. Às vezes assustavam-me e eram mais fortes do que eu. Mas hoje? Hoje vou ficar aqui, com a certeza boa de que é aqui que quero ficar. A certeza boa de que esta é a minha casa. A casa do meu passado, a casa da minha família. A casa que eu honro no privilégio imenso que é a perpetuação do legado dos Outros que viveram antes de nós. Pensar que me quis desfazer dela porque era pesada demais, grande demais, opressiva demais, tumular demais. Não! Esta é a minha casa.

E agora que a Casa me é tão boa, tão minha, acho que começo a encontrar a força e a vontade de olhar para outros legados em forma de Terra e pensar o que vou fazer para os resgatar aos anos de negligência em que os tenho escondido. Ando com ânsias de pegar em tudo com as minhas mãos, como se a Terra e a Casa me corressem nas veias e me palpitassem de Vida. Acho que estou a acordar do sono da morte da Mãe, do não-casamento, da luta da carreira, da experiência da solidão. E estou a acordar cheia de energia.

É... ainda não sei o que pensar desta semana esquisita.

6 comentários:

sem-se-ver disse...

(um abraço)

Dias as Cores disse...

Então, se estás a acordar...desejo-te os bons dias!...E não te preocupes com o que pensar: de manhã andamos por vezes estremunhados!

antonio ganhão disse...

A existência, somente isso.

A. disse...

"não tem nada a ver com o luto que fiz da Mãe e em que vivo há doze anos, um luto que, viva eu até aos cem anos, nunca se erradicará da minha alma e do meu coração. É, digamos, um luto crónico, uma doença incurável que se vai tratando e que, de quando em vez, se manifesta num episódio mais doloroso."

Isto tocou-me, porque sinto exactamente relativamente à minha. Luto crónico, é isso mesmo.

Beijinho

mdsol disse...

Erleben. A minha sugestão de palavra para esta tua semana)
:)))

analima disse...

Também eu tenho vivido umas semanas esquisitas. Talvez por isso gostei bastante deste texto. :)