10 de setembro de 2010

Zwieback ou como pequenas coisas me lembram de Ti


Ali está, depositado na mesa da cozinha, um pacote de tostas. Um pacote sem história, um envólucro que vai para o lixo, uma embalagem que não parou na despensa, que não foi arrumada, que me empata o tampo da mesa, a que mais logo a Paula deve dar sumiço no seu brio de limpezas e arrumações nesta casa que já foi tua, Mãe.
"Zwieback". Nunca me lembro de te ter ouvido o correspondente em Português: tosta. E ali está o pacote que me olha, "Zwieback", e que me faz lembrar de Ti quando me sento à mesa de frente para ele. "Zwieback". Também dizias "Feuer", lembras-te? E "Lotototto". E eu, na impertinência dos meus 16 anos, irritava-me que dissesses estas coisas e dissesses "encarnado". E corrigia-te. E os meus colegas achavam-te cool e eu achava que tinhas de falar Português como toda a gente. Lembras-te? Que saudades, Mãe, que saudades das minhas irritações com o teu Português tão teu. E tu dizias que sim, que ias emendar mas lá vinha sempre "Zwieback" ou outra coisa igualmente estranha.
Sabes que dizem de mim o mesmo? Que o meu Português tem sotaque, eu que julgo falar impecavelmente? Que eu digo coisas extraordinárias como "aparcar" e "encetar", que, pelos vistos ninguém mais diz? Mas tu dizias. E se eu tivesse filhos talvez eles me corrigissem como eu te corrigia, eu diria que sim a tudo, com a paciência que tinhas, e seguiria a "aparcar o carro" ou a "encetar um pacote de tostas", que pelo menos essas eu digo à portuguesa.
Sabes, Mãe, é assim do nada que me assaltas vezes sem conta. Estas pequenas coisas que me lembram de Ti. Que saudades, Mãe, que nunca passam. Nunca esmorecem. Às vezes ficam encobertas de mansinho, como uma moínha a que nos habituamos e não damos conta, outras és uma barragem diluviana que se desmorona e me afoga. No resto do tempo, Mãe, és o sentimento da ausência, a amputação com que vivo e que prótese alguma substitui.
"Zwieback". Vês? Hoje, por estes dias, bastou isso: "Zwieback", Mutti, nur Zwieback...

5 comentários:

Goldfish disse...

Se não forem as pequenas coisas da convivênvia não há memória e sem ela não há saudade. E saudade, mesmo que dita com sotaque, é isso mesmo que descreves e, como se costuma dizer, não há nada mais português que a saudade, certo?

P.S. - a sério, tens sotaque? não sei porquê, não acredito, devem ser só uns quantos idiotas que o acham, como os que dizem que a minha pronúncia não é de Lisboa.

Ältere Leute disse...

ZWIESPALT: é isso - em quqntos sentidos lhe quiser dar! Bjs

Salvador disse...

Uma muito bonita homenagem à sua Mãe e à sua memória...

mdsol disse...

Tão bonito o teu texto, Blondinha. Palavras que transpiram muitas, muitas saudades que a passagem do tempo somente consegue arredondar.
Beijinho

:)))

Maria de Deus disse...

É que nunca passam. Mesmo! Um beijinho.